30/10/2019

Sarau das Estações e Projeto Mial realizam integração da população com trajetória de rua e contribuem para sua saúde mental

No dia 24 deste mês, usuários do Centro Mineiro de Toxicomania (CMT), dos Centros de Referência da População de Rua das regionais Centro-Sul e Leste, do Consultório de Rua da região Centro-Sul e do Centro de Convivência César Campos se reuniram no Espaço Comum Luiz Estrela para a quarta edição do Sarau das Estações, projeto colaborativo e multi-institucional, idealizado pelo Centro Mineiro de Toxicomania (CMT), da Rede Fhemig, que, por meio de atividades culturais e artísticas, promove ações terapêuticas, com resultados efetivos para a saúde mental da população com trajetória de rua atendida pelos quatro serviços.

Itinerantes e em rede

O projeto Sarau das Estações, criado na primavera de 2018, surgiu no CMT para atender ao pedido de um usuário do serviço, e logo evoluiu para um projeto de ação colaborativa e multi-institucional de saraus itinerantes e em rede, que reúne, além do CMT (que é um Cersam Ad 3 estadual e integra a Rede de Saúde Mental da capital), três serviços da Prefeitura de Belo Horizonte destinados à população com trajetória de rua e situados na área de abrangência do CMT: os Centros de Referência da População de Rua das regionais Centro-Sul e Leste, o Consultório de Rua da região Centro-Sul e o Centro de Convivência César Campos.

Até agora, foram realizadas duas edições do Sarau no Parque Municipal René Gianetti, uma na Ocupação Anita Gomes, e a do dia 24 deste mês no Espaço Comum Luiz Estrela.

Segundo a diretora do CMT, Mônica Quadros, “o sarau é um projeto que possibilita a construção da autonomia, despertando novas potencialidade dos usuários e a circulação pela cidade. Os usuários participam ativamente da produção e da execução do projeto, por meio das apresentações artísticas, construídas juntamente com a equipe assistencial e os estagiários da unidade. O sarau ganha vida para além da instituição, uma vez que é realizado em pontos diferentes da nossa cidade, possibilitando a ressignificação e a apropriação de acesso dos espaços pelos usuários”, esclarece Mônica.

Inclusão

A terapeuta ocupacional do CMT, Sabrina Gonçalves, conta que o pedido de um usuário a motivou a desenvolver o projeto. “O sarau é uma proposta de inclusão dos pacientes no âmbito da arte e da cultura. “Depois do projeto, eu sinto diferença na relação que eles estabelecem com a gente, têm mais proximidade e afetividade. Mudou o cotidiano dentro do serviço, pois os pacientes participam ativamente da preparação dos saraus, que se estendem por semanas até ficarem prontos”, afirma Sabrina.

Não levou muito tempo para surgir outra demanda de um paciente do CMT. Logo após a realização do primeiro sarau, Roberto do Nascimento, poeta autodidata e usuário da unidade, idealizou o projeto Mial (Movimento de Incentivo à Leitura) que propõe a produção de textos a partir da leitura de obras disponíveis na Biblioteca do CMT. A proposta recebeu apoio imediato da Sabrina e de outra profissional do serviço, a bibliotecária Carina Martins, assim como da diretoria do CMT.

Novo significado

O Mial se transformou numa oficina que acontece, desde março deste ano, das 9:30 às 11:00 horas, às terças-feiras, no CMT, e conta com a participação ativa dos pacientes da permanência-dia. “Com o Mial, estar no CMT adquiriu um novo significado. Os pacientes nos veem (eu e Carina) e nos chamam de Mial, conta a terapeuta ocupacional”.
Responsável pela proposição do Mial, Roberto do Nascimento, de 54 anos de idade, afirma que, num dado momento, se deu conta de que não teria dificuldade para produzir um livro. “Também percebi que a maior dificuldade é fazer o brasileiro ler. Acabei ficando maravilhado por perceber que poderia fazer algo para incentivar a leitura entre a gente”, se recorda o poeta ao falar sobre como nasceu a ideia do projeto. “Sinto o maior orgulho, as oficinas do Mial estão lotadas, têm de 19 a 25 pessoas”, diz com entusiasmo.

“A poesia chegou para mim, quando eu cheguei ao CMT”, resume Roberto sobre sua trajetória como poeta. Ele está na unidade há seis anos e, nesse período, produziu, segundo ele, 500 poesias.

Ciclo produtivo

Para completar esse ciclo produtivo de boas ideias, o paciente Rafael Bruno, que frequenta o CMT há pouco mais de um ano, sugeriu, ao participar do Mial, a criação de uma oficina intitulada “brincando com as palavras”, como forma de potencializar ainda mais as ações do Mial. Assim, a partir de sua sugestão, o grupo criou o Jornal do CMT, que reúne a produção do Mial, além de permitir aos participantes pequenas incursões pelo universo da produção jornalística, principalmente com o uso de entrevistas.

Motivação

Diante da variedade de ações implementadas nesse curto período de tempo, Sabrina, e os demais profissionais envolvidos no processo, se sentem motivados. “Realizamos um trabalho que transborda a instituição, que agrega pessoas. É um projeto que se sustenta devido à colaboração e a crença de novas pessoas da equipe, que se motivam a trabalhar juntas. Realizamos um movimento de trilhas associativas dentro da saúde mental, pois uma atividade leva à outra. De um sarau, uma oficina; de uma oficina, um jornal. A expectativa é que surjam novos projetos dentro de uma construção coletiva”, espera a terapeuta ocupacional.

Lugar de pesquisa

Formado em teatro pelo Palácio das Artes e mestre em Teatro pela Escola de Belas Artes da UFMG, Igor Leal está no CMT há apenas seis meses e integra o projeto Redutor da coordenação de Saúde Mental da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), que disponibiliza oficineiros e redutores de danos para os serviços de saúde mental de BH. Em sua opinião, o CMT é um lugar de pesquisa e de ampliação das subjetividades. “Eu penso a arte como dispositivo de convívio, como facilitadora da expressão, com foco na produção estética. A arte permite criticar as subjetividades normativas e ampliar a realidade”, assegura Igor.

Códigos e dispositivos

O pesquisador afirma que busca códigos e dispositivos simbólicos que permitam a ele ir além da arte hegemônica, que é ofertada como objeto de consumo. Segundo Igor, como a arte admite o fracasso e o insucesso, e pode ser inacabada, sua presença no CMT permite estudá-la como lugar de convívio e sua inserção no cotidiano dessas pessoas. “A arte como caminho para a autopercepção e a percepção do outro”, sintetiza.

No CMT, Igor desenvolve suas propostas tendo como base a tríade educação, saúde e arte. Para isso, utiliza três tipos de oficinas: dança livre, por meio de exercícios de percepção corporal; artes plásticas, com o uso de vários elementos como argila, papel, tronco de árvores, entre outros e teatro, a partir da proposição de conteúdos e cenas pelos usuários. “A decisão final é sempre deles”, assegura Igor. Além dessas oficinas, o mestre em Teatro desenvolve ainda o que chama de “Cartografias Eletivas”. Assim, toda sexta-feira, ele e o grupo de usuários caminham pela cidade e produzem relatos sobre as experiências que vivenciam nessa caminhada.

Ao lançar mão de todos esses recursos, Igor busca fazer com que os pacientes transcendam os rótulos (viciado, malandro, entre outros) que, de uma forma ou de outra, reduzem a complexidade de suas identidades e vivências.

Por Alexandra Marques