28/10/2024
Publicação científica reconhece sucesso de protocolo para retirada de traqueostomia em crianças em hospital público de Minas Gerais
Serviço de Assistência Integral à Criança Traqueostomizada do Hospital Infantil João Paulo II apresenta índices superiores ao de importantes instituições internacionais
A dona de casa Mirian Silva da Costa, 40 anos, de Contagem, mãe da Alycia, e a pescadora Juliana Costa, 41 anos, de Lagoa da Prata, mãe da Gabriela, conhecem, na prática, o significado dos resultados descritos no artigo publicado pela equipe multidisciplinar do Serviço de Assistência Integral à Criança Traqueostomizada (Sait) do Hospital Infantil João Paulo II (HIJPII), da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig), na Revista Paulista de Pediatria, em setembro deste ano. A publicação está presente em várias plataformas de buscas internacionais.
Suas filhas passaram pelo “Protocolo de Decanulação de Pacientes Pediátricos” abordado no artigo, tiveram a cânula de traqueostomia retirada (decanulação) e hoje vivem sem as restrições impostas pelo dispositivo.
Com a publicação, outros pacientes infantis no Brasil e no mundo, como Alycia e Gabriela, poderão receber os mesmos cuidados, já que a presença nessas plataformas permite ampliar o alcance do protocolo elaborado pelo Sait, que deu uma melhor qualidade e vida a quase mil crianças acolhidas pelo Serviço desde a sua criação, em 2011, até agora.
Liberdade
Alycia nasceu prematura extrema e, quatro meses depois, foi traqueostomizada. O caso dela é um dos 120 retratados pelo artigo da equipe multidisciplinar do Serviço.
“Minha filha veio para casa com a traqueostomia. Aprendi todos os cuidados no Hospital Infantil João Paulo II. A princípio, era um bicho de sete cabeças. Não recebi bem a condição da Alycia, pois não conhecia nada sobre a traqueostomia. Relutei, mas vi que não tinha outra alternativa. Pedi a Deus para me acostumar a lidar com aquilo. Ela ficou com a cânula dos quatro meses de vida até os 2 anos de idade e ainda permaneceu com uma fístula traqueocutânea (complicação benigna da traqueostomia) que foi fechada quando tinha 4 anos”, recorda Mirian.
Segundo a mãe de Alycia, durante os quase dois anos em que sua filha esteve com a cânula, ela conviveu com um medo constante. Mirian tinha receio de que a menina permanecesse com a traqueostomia por toda a sua vida, de que entrasse água durante o banho ou de sua filha arrancar a cânula e ela não ver a tempo de ajudá-la, entre outros temores. Hoje, sete anos após a decanulação, Alycia, 9 anos, leva uma vida normal como outras crianças da sua idade.
“Para mim, a retirada da cânula foi uma benção e nos trouxe mais liberdade. Eu só tenho que agradecer a Deus e à doutora Isabela por ser tão dedicada e por ter amor pelo que faz. As enfermeiras da sala de observação foram sempre solidárias. Até hoje digo que não sei o que seria de mim se não fosse o Hospital João Paulo II. Tudo o que a equipe me passava, eu seguia à risca. Parecia que eram tempos eternos, mas quando olho para trás, vejo que foi até rápido. A traqueostomia não é um bicho de sete cabeças e salva vidas”, pontua Mirian.
Inestimável
Segundo a pneumologista pediátrica do HIJPII e coordenadora do Sait, Isabela Furtado de Mendonça Picinin, a repercussão de uma publicação como essa é inestimável.
“O protocolo pode abrir caminho para outras crianças se beneficiarem dessa conquista em serviços que queiram usar o artigo como um ‘modelo’ a ser seguido. Nosso protocolo apresentou 100% de sucesso. Ou seja, todas as crianças que foram elegíveis à decanulação toleraram a retirada da traqueostomia de forma segura”, comemora.
Intitulado “Protocolo de decanulação em pacientes pediátricos: estudo de série de casos”, a publicação traz os resultados alcançados com 120 crianças atendidas no Sait entre 2011 e 2021 e descreve todas as etapas necessárias à segurança do procedimento.
Tempo ideal
Decanulação é o processo de retirada da traqueostomia para retomar a respiração espontânea. O recomendado é que esse procedimento seja realizado o quanto antes para a melhor recuperação dos pacientes e redução do número de complicações.
A traqueostomia é uma cirurgia que cria uma abertura artificial no pescoço para desobstruir as vias aéreas superiores (formadas pelo nariz, faringe, laringe e a parte superior da traqueia) do paciente e preservar a sua vida.
Se o procedimento de decanulação for realizado com muita antecedência e sem o monitoramento ideal, as consequências vão da insuficiência respiratória ao óbito. A avaliação adequada é essencial para que a decanulação seja feita com segurança e eficácia.
As taxas de falha de decanulação em outros serviços variam de 6,5% a 21,4%. O resultado obtido com o protocolo desenvolvido pela equipe do Sait tem taxa de falha de 0%, o que atesta a sua segurança. Desde a sua aplicação, não houve nenhuma complicação como óbito ou a necessidade de recanulação.
Salvar vidas
Filha da Juliana e do pescador e presidente de uma colônia de pescadores, Cristiano Alessandro de Araújo, 47 anos, Gabriela tem 2 anos e 10 meses. A pequena foi traqueostomizada com menos de três meses de vida, em razão de complicações após infecção pelo vírus da covid-19, em março de 2022. Gabi ficou quase dois anos com a cânula, que foi retirada em fevereiro deste ano.
“Quando a equipe médica se reuniu conosco para falar a respeito da traqueostomia, foi um choque pela nossa falta de conhecimento, mas aceitamos e tivemos treinamento de como aspirar, higienizar e cuidar. Com o passar dos meses, foi ficando mais fácil e tivemos mais segurança. As pessoas olham as crianças com traqueostomia com curiosidade. Perguntavam sobre o motivo de a Gabi usar a cânula e reagiam com pena. Eu discordo disso, pois foi o que salvou a vida da minha filha quando ela precisava respirar“, explica Mirian.
A pescadora conta que o processo de decanulação foi tranquilo. De acordo com ela, a médica Isabela Picinin explicou como seria o procedimento e deu todo o suporte necessário para que tanto ela e o marido quanto a filha vivenciassem o processo da melhor forma possível. Juliana se recorda de que a menina ficou tranquila durante a retirada da cânula, realizada no Centro de Tratamento Intensivo (CTI) do HIJPII.
“Para nós, a retirada da cânula foi uma benção. Hoje, a Gabriela tem uma qualidade de vida bem melhor, pode brincar e comer com mais segurança e liberdade. Ela recebeu um tratamento de excelência no Hospital João Paulo ll. A equipe é nota 10. O hospital tem excelentes profissionais e um serviço de ótima qualidade. Aos pais que estão iniciando nessa caminhada, eu digo para seguirem todas as orientações dos profissionais para os cuidados e higienização da cânula e digo, com toda a certeza, que tudo passa. Então, tenham fé”, assegura Juliana.
Papel fundamental
Para entender a contribuição do artigo publicado, basta ter em mente que o processo de decanulação em crianças não é padronizado. Na ausência de um protocolo definido, o procedimento varia entre as instituições hospitalares, seja no país ou no exterior.
O protocolo desenvolvido pelo Sait merece destaque por ser 100% seguro. Paralelo a isso, a taxa atual de decanulação do serviço é de 33% - nove pontos percentuais a mais que as estatísticas anteriores do próprio HIJPII - quando registrava uma taxa de 24%. Esse novo patamar faz com que o Sait supere outros importantes serviços no mundo.
Como esclarece Isabela Picinin, “a taxa de decanulação do serviço é limitada pelo fato de o nosso hospital ser referência em doenças raras e, portanto, uma parcela considerável dos pacientes traqueostomizados apresentam alterações neurológicas graves, necessitando do uso de traqueostomia para a proteção das vias aéreas e não sendo elegíveis para a decanulação”.
Fisioterapia e Fonoaudiologia
A fisioterapeuta da equipe multidisciplinar do Sait Luanna Rodrigues, explica que, na criança com traqueostomia, a fisioterapia tem papel fundamental e atua principalmente no acolhimento da família e no seu treinamento para os cuidados com a cânula.
“Deixamos claro para os pais e cuidadores que a traqueostomia não é inimiga e sim uma aliada para que seus filhos possam respirar e que, por isso, ela precisa ser manejada de forma correta. Para que as crianças sejam decanuladas, é necessário elas passarem por avaliações específicas com provas funcionais. Se essas avaliações, que são conduzidas juntamente com a equipe de fonoaudiologia, forem positivas, muito provavelmente elas estarão aptas para a decanulação segura”, ressalta.
Pioneirismo
Criado em 2011, o Sait é um serviço pioneiro e de referência para o acompanhamento humanizado, multidisciplinar e de excelência às crianças traqueostomizadas, com demanda crescente no estado.
Ele é modelo no Brasil e no mundo e um dos maiores serviços nacionais voltado exclusivamente à assistência de crianças traqueostomizadas. O Sait também realiza a troca trimestral de cânulas e o treinamento dos familiares e cuidadores das crianças para o manejo correto da traqueostomia, com foco na prevenção e na abordagem de possíveis complicações.
Esse treinamento se estende ainda aos responsáveis pelo acompanhamento dessas crianças em ambiente escolar. É feito um monitoramento de perto para garantir que nenhuma delas fique sem acesso à educação. O bem-estar e a aceitação na escola são supervisionados com base nos relatos das famílias e dos contatos com as instituições de ensino para uma adequada integração e para facilitar a aprendizagem desses meninos e meninas.
Caderneta
Para tornar ainda mais didático o treinamento, foi criada, em 2023, a “caderneta da criança traqueostomizada”, que traz informações aos familiares e cuidadores e tem um papel de “comunicação” entre eles e a equipe assistencial.
A Caderneta foi desenvolvida pela equipe multidisciplinar do Sait e traz um olhar assistencial integral, amplo e integrativo. É um material informativo de qualidade técnica e visual que auxilia os familiares e a equipe assistencial a cuidar cada vez melhor das crianças traqueostomizadas para melhorar sua qualidade de vida.
“A grande expertise da equipe e a atuação coesa de vários especialistas (composta por pneumologista, broncoscopista, fonoaudióloga, fisioterapeuta respiratório, enfermeira, técnico de enfermagem, psicólogo e assistente social) associadas ao grande número de crianças atendidas (830) faz com que sejamos referência de assistência de qualidade”, completa a coordenadora do Sait.
Papel social
Os pacientes do Sait são encaminhados via regulação do Sistema Único de Saúde (SUS). Ao chegarem, as crianças recebem o acolhimento necessário e é elaborado o Plano de Tratamento Singular que tem como foco as características de cada uma delas.
A equipe do Serviço, para além do seu papel assistencial, exerce ainda um papel social ao contribuir para a redução da discriminação e da exclusão do convívio social das crianças traqueostomizadas, por meio da disseminação do conhecimento sobre o assunto.
De acordo com Isabela Picinin, em geral, as pessoas não sabem o que é uma traqueostomia. Esse desconhecimento faz com que as famílias percebam, em seu dia a dia, reações de preconceito em vários locais por elas frequentados, como o transporte público e os parques, por exemplo.
Normais
Os especialistas destacam que a traqueostomia, na maioria dos casos, não compromete a inteligência das crianças e que elas utilizam as cânulas devido a uma obstrução abaixo das cordas vocais, o que impede a respiração pelo nariz e pela boca. Aquelas que apresentam um quadro neurológico grave provavelmente permanecerão traqueostomizadas para evitar que os problemas pulmonares sejam agravados.
As causas mais comuns de traqueostomia são a prematuridade; tempo prolongado de intubação por doenças graves (meningite, pneumonia, cardiopatia graves); sequelas neurológicas após acidentes (afogamento, atropelamento) ou por complicações no parto.
Sistematização
O Sait tem um extenso histórico de contribuições para a sistematização do protocolo de decanulação, seja no país ou no exterior. Ao longo dos seus 13 anos de atuação, o Serviço, por meio de seus profissionais, levou a experiência acumulada para além do seu cotidiano de assistência, em um processo de formação de profissionais de outros hospitais para o atendimento de excelência à criança traqueostomizada.
Em parceria com a Sociedade Mineira de Pediatria, o Sait organizou o 1º Workshop de Assistência Integral à Criança Traqueostomizada em 2016.
No ano seguinte, o grupo de profissionais do Serviço publicou o artigo “Modelo de Assistência Multidisciplinar à Criança Traqueostomizada”.
Ainda em 2017, o Sait contribuiu para a elaboração da 1ª Diretriz Nacional de Assistência à Criança Traqueostomizada da Associação Brasileira de Otorrino Pediátrica (ABOPe) e da Sociedade Brasileira de Pediatria (SPB). A partir da elaboração dessa diretriz nacional, publicada em 18/02/2017, foi criado o “Dia Nacional da Criança Traqueostomizada”, comemorado em 18 de fevereiro e marcado por ações de conscientização.
Colaboração internacional
Em 2019, a médica Isabela Picinin representou a equipe do Sait ao realizar dois workshops em Shanghai para treinar a equipe de profissionais chineses para a criação do primeiro serviço de assistência à criança traqueostomizada na China, tendo o Sait como modelo.
Em 2020 a vídeo aula: “Manejo da Traqueostomia na Infância” elaborada pela equipe do Sait foi replicada pela Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia; pela Academia Brasileira de Otorrinolaringologia Pediátrica, além da Sociedade Brasileira de Pediatria, que considerou o treinamento como “indispensável nos dias atuais”, tendo sido divulgado, em 2021, o segundo módulo do treinamento com foco nos cuidados de enfermagem.
A equipe do Sait também participou da elaboração do “Guia de Atenção à Saúde da Pessoa com Estomia” (abertura cirúrgica de um órgão interno), publicado pelo Ministério da Saúde em 2021.
Por Alexandra Marques
Fotografias: Arquivo Pessoal, Fhemig Divulgação e Rafael Assis